'Buddha in Africa", de Nicole Schafer (África do Sul/Suécia, 2019)




SINOPSE:
Enock Bello, um adolescente do Malawi que cresceu em um orfanato budista chinês, sente-se dividido entre suas raízes africanas e a educação chinesa. Uma vez que sonha em se tornar um herói das artes marciais como Jet Li, Enock, em seu último ano de escola, precisa tomar algumas decisões difíceis sobre seu futuro. Ele voltará para seus parentes em sua aldeia natal ou estudará no exterior na China? Contra a crescente influência da China no continente, "Buddha in Africa" fornece uma visão única das forças do poder brando cultural sobre a identidade e a imaginação de um garoto africano e de seus colegas de escola que crescem entre duas culturas.

Dentro dos seus trinta primeiros minutos, o o documentário me incomodou profundamente. Diante de um tema tão complexo que envolve práticas neocoloniais de um país que hoje é um dos maiores investidores econômicos no continente africano, a China, me pareceu que a diretora demorou muito tempo para dizer a que veio. Colamos no ator social principal, que desde o início da narrativa se mostra ambivalente sobre a condição de ter sido "adotado" pela instituição chinesa que acolhe crianças órfãs em diversos países africanos, submetendo-se ao ensino do mandarim chinês e de outros elementos da cultura chinesa como o budismo e o kung fu. O excesso de rigidez aplicado a cerca de 300 crianças que foram afastadas de suas famílias para obter um suposto futuro melhor revela cenas de profundo incômodo. Ainda que no início do filme pareça haver uma construção de uma crítica sobre este modelo de solidariedade, tive a impressão de que a diretora abandonou este ideia.

Não que isso seja necessariamente um problema. "Buddha in Africa" é construído com uma narrativa observacional que tenta ao máximo não julgar os envolvidos. É interessante como nos aproximamos de Enock e simpatizamos com sua ambivalência quando o ouvimos falar do amor de filho que sente pelo seu treinador de kung fu, chinês, e quando desabafa sobre não querer deixar de falar sua língua local ao passo que se torna fluente em mandarim. As ambiguidades e contradições comuns a qualquer ser humano e ao próprio mundo permeiam todo o filme, e acredito que aí está a força dele. A diretora poderia cair na armadilha fácil de demonizar os neocolonialistas chineses, mas prefere deixar a cargo do espectador o que pensar diante de tantas complexidades.

E tais complexidades estão todas lá. As missões humanitárias no continente africano com base em estereótipos e imaginários os mais diversos permitem que chineses se sintam no direito de "resgatar" crianças que não desejam sair do ambiente familiar no qual vivem. Ao mesmo tempo, essas crianças são levadas a crer que foram escolhidas e têm sorte por fazer parte dessa comunidade chinesa, de aprender uma língua falada por milhões de pessoas no mundo, de estudar para ir para uma universidade no estrangeiro. Ainda, a imposição da religião budista, dos costumes culinários e da rotina disciplinadora fazem recordar o trauma colonial, e o filme dá uma guinada brusca quando, finalmente, alguns dos jovens que foram criados na instituição se revoltam contra uma punição que consideram injusta.

Neste momento, um pouco depois do meio do filme, senti que a diretora por fim havia decidido romper com o mal estar generalizado das cenas anteriores de submissão e silêncios, e dos chineses demonstrando sem pudor algum seus imaginários de África e suas "boas intenções". Ao tempo que percebi que esta cena "de virada" foi apenas mais uma cena do cotidiano, me dei conta da foça do longa: a ambivalência de Enock não poderia ser mais honesta que isso. Gosto de saber que o filme não aponta saídas fáceis para as relações que apresenta, e ganha muito com o personagem que escolhe para nos guiar nessa história. Enock tem 16 anos, é bastante expressivo em sua timidez, se revela muito mais quando está conversando "entre os seus", não esconde jamais seu sentimento de deslocamento - o que se mostra muito marcado no final do filme.

Impossível ver esse filme e não pensar em "The African Who Wanted to Fly", da Samantha Biffot (Gabão, 2016), documentário sobre Luc Benza, um garoto gabonês que sonhava em ir para a China e se tornar mestre de kung fu. A influência chinesa sobre a África está para além dos imaginários criados pelo cinema de Jackie Chan e Jet Li - obras que também atravessam filmes como "Supa Modo", de Likarion Wainaina (Quênia, 2018) e os curtas do burquinense Cédric Ido, como "Twaaga" e "Hasaki Ya Suda" - mas se reflete especialmente no aporte econômico do país sobre o continente. Não surpreende, portanto, o fascínio que essas narrativas de artes marciais podem causar nos sujeitos africanos, tampouco a rejeição que surge de modos de vida asiático que em nada se aplicam à vida tradicional e cotidiana dos países africanos.

Interessante pensar em como o discurso dos educadores chineses é sempre no sentido de que aquelas crianças terão uma vida melhor fora da África, longe da fome e da pobreza, contrariando uma noção panafricanista que prefere pensar no sujeito africano em África, que estimula o crescimento do continente a partir dos próprios africanos e não com o suporte unicamente estrangeiro. A diretora não opina sobre nada disso, mas o modo como constrói os dilemas do seu personagem abre caminhos possíveis para se pensar questões como deslocamentos, não-lugar e identidades.

Veja o trailer:




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